A desonestidade da análise de gênero da esquerda marxista e transativista
Aviso: esse texto trata de assuntos delicados que possam vir a ser gatilho para mulheres em situação de vulnerabilidade.
“A operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós” -Monique Witting
Um dos argumentos mais usados para sustentar que não se discuta sobre questões relacionadas a gênero e a qualquer conceito que seja caro ao feminismo — de maneira voltada a apelar para o sentimentalismo e comoção popular — é a acusação de que é um ato transfóbico falar de opressão por sexo ou da mera existência de sexo — enquanto órgãos sexuais e suas diferenciações em mulheres e homens. Um feminismo baseado na materialidade dos corpos das mulheres entra em cheque, portanto, ao reivindicar que as opressões que esses indivíduos do sexo feminino sofrem são opressões baseadas no sexo e podem ser percebidas desde terna idade (estupro de crianças meninas, casamento infantil, infanticídio de bebês do sexo feminino, etc).
Além disso, relativizar a existência de sexos relativiza a existência de pessoas homossexuais, já que, se dois homens se relacionam afetiva e sexualmente, por exemplo, o sexo (como ato sexual) e os órgãos sexuais em si, estão envolvidos no ato sexual, o ato sexual não é feito no plano do mental, é um ato físico. O discurso transativista prioriza a falácia de que sexo não é real, logo, não devia existir atração sexual por pessoas do mesmo sexo, os órgãos sexuais não deviam, para eles, ser priorizados ou uma parte importante no ato sexual. Ao contrário: a atração sexual que seres humanos, homo ou hétero, sentem uns pelos outros deve ser produto de uma atração pela performace que os indivíduos adotam para si. Um homem gay, portanto, seria atraído pela performace da masculinidade; e uma mulher lésbica, pela performace da feminilidade. Gostaria de pontuar que feminilidade e masculinidade são construções sociais frágeis e superficiais que moldam a vida das pessoas para sempre em opressão e capacidade de oprimir, respectivamente. Logo, feminilidade é apenas um conjunto de características opressoras construídas socialmente, como estética feminina (maquiagem, roupas, ausência de pelos em mulheres adultas) e comportamento feminino (doçura, natureza maternal, paciência, silêncio, dentre outros) — e é absolutamente impossível se atrair pela feminilidade, a não ser que essa atração seja fruto de um fetichismo.
Bom, não é possível pontuar em apenas um texto a quantidade de perca teórica feminista que significaria se mulheres não poderem falar de mulheres como classe, se mulheres não poderem falar que factualmente são oprimidas no patriarcado enquanto mulheres, isto é: por ter nascido com uma vagina. Pode-se dizer apenas que é o desmantelar teórico do movimento feminista e da luta lésbica e gay em sua essência.
Mas, não se pode mais falar sobre isso, o peso de se assumir uma feminista crítica de gênero, abolicionista de gênero, feminista radical ou uma lésbica radical e/ou política, se tornou o peso de sofrer coerção, linchamento, silenciamento, censura, abuso virtual e discurso de ódio (morte às radicais, incitação ao abuso sexual dessas mulheres, ao estupro corretivo de mulheres lésbicas, etc). Uma das cartas na manga para tentar criar uma relação de abuso psicológico e sentimento de culpa nessas mulheres são as frases: “vocês são transfóbicas”, “seu discurso é de ódio e mata pessoas trans.”, “no país que mais mata pessoas trans, vocês são criminosas”.
Essa semana foram feitas inúmeras críticas ao feminismo radical no Brasil, por meio de redes sociais, inclusive, muitas dessas críticas vieram de grandes influenciadores, sobretudo transativistas e marxistas, atacando e denunciando o maior veículo de feminismo radical no país: a revista QG feminista, por ter publicado textos em defesa de mulheres lésbicas que se negam a se relacionar com pessoas que performam a feminilidade e possuem pênis. A revista fez uma retrospectiva do assunto após uma revista dita lésbica e bissexual publicar um texto cuja problemática girava em torno da questão “deve uma lésbica cis se relacionar com uma travesti?”, publicado por uma travesti. A título de curiosidade a resposta indicada é “sim, elas devem” e, caso elas não queiram, não são lésbicas, são “genitalésbicas”. Mais uma vez o movimento queer transativista se mostra um movimento pautado em desmantelar os conceitos, visibilidades e direitos duramente alcançados por mulheres e, de maneira não disfarçada, roubá-los. O conceito de lésbica foi roubado, arbitrariamente, e às lésbicas foi relegado o lugar de “genitalésbicas”.
Quando, em mais de 1000 comentários, mulheres lésbicas se uniram para denunciar os abusos de tal texto, nenhum ativista LGBT ou aliado à causa se mostrou presente, solidário, ou deu voz a essas mulheres lésbicas. Vindo de um movimento que se diz inclusivo às mulheres lésbicas, que possui ao L para representar esse grupo, é muito sugestivo o fato de que eles não se preocupam, aparentemente, com lesbofobia. Mas, quando a revista QG postou textos sobre o assunto, ativistas queer e marxistas de peso se mostraram prontos para atacar a revista, levando sua legião de fãs com eles.
Bom, nesse momento é importante pontuar alguns fatos irônicos, para não dizer que são, no mínimo, contraditórios, sobre a teoria marxista, não só no contexto brasileiro:
O primeiro ponto é que o marxismo é uma teoria baseada no materialismo histórico, cuja finalidade é a interpretação da história da humanidade sobre um viés material — as relações sociais e a forma como a sociedade se organiza é voltada para a produção material daquilo que é necessário para a sua sobrevivência. Isso, de maneira objetiva, deveria querer dizer que a análise social feita por um marxista seria uma analise material. Nas relações de classes econômicas a analise marxista realmente segue a risca o viés material e isto quer dizer que as relações econômicas são CONSTRUÇÕES SOCIAIS baseadas na exploração de um grupo por outro e os marxistas pontuam isso para poder lutar contra o sistema. No entanto, como demonstra-nos Monique Witting em seu texto “não se nasce mulher”:
“Para as mulheres, o marxismo teve duas consequências. Tornou impossível que tomassem consciência de que eram uma classe e, portanto, as impediu de constituírem-se como classe durante muito tempo, deixando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dela uma relação“natural” — sem dúvida, a única relação vista dessa maneira pelos marxistas, junto com a relação entre mulheres e filhos — , e ocultando, finalmente, o conflito de classe entre homens e mulheres através de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã).” (WITTING, 1981)
Witting, em 1981, já alertava-nos sobre a incongruência do marxismo, ele era material até certo ponto, e esse ponto era o mito da essência feminina. Para muitos dos marxistas — pelo menos aqueles que se associam ao transativismo — ainda hoje a opressão feminina é naturalizada, como algo nato, como uma essência, alma ou performatividade. Eles entendem e lutam contra a construção social das relações econômicas e as denunciam, mas insistem em agir como se ser feminina fosse algo natural ou, quando assumem ser construído, tratam como uma escolha. Nenhum marxista diria que o trabalhador ESCOLHEU trabalhar na linha de produção, escolheu não ter direitos trabalhistas e viver em condições insalubres em prol do bem estar da burguesia. Mas, está tudo bem dizer que a “mulher” como ela é, é um fato que extrapola a materialidade, portanto é um conjunto de característica que se a pessoa tem em si, ela é mulher. Ou que o sexo não é uma base material de exploração. Não querem assumir que homens, como classe, oprimem mulheres, como classe (considerando, claro, todas as interseccionalidades possíveis entre as mulheres — raça, classe econômica, territorialidade e etc). Marxistas aliando-se ao discurso pós-moderno e liberal de que sexo biológico não é real e não exerce um papel determinante na vida dos indivíduos que nascem em determinado sexo, e afirmando que masculinidade e feminilidade são o que de fato é uma realidade, é no mínimo uma piada muito ácida contra qualquer materialismo histórico.
Outro ponto de completa desconexão no discurso marxista é a defesa sistemática de que prostituição é trabalho, é chamada de “trabalho sexual”. Prostituição não é trabalho, prostituição é estupro pago, uma vez que o único limite entre o sim e o não para que o estupro aconteça é o dinheiro, o dinheiro paga o sexo, mas não é real consentimento. Não poderia ser, uma vez que a maior parte das mulheres em estado de prostituição o estão por violência, abuso físico, sexual e psicológico. Não poderia ser, porque uma profissão não é apoiada no tráfico de mulheres e crianças. Não poderia ser, porque, como diz Julie Bindel, se prostituição é “trabalho sexual”, estupro é meramente um furto. E, acrescentando a esse raciocínio, a prostituição de crianças e adolescentes não seria pedofilia, seria meramente trabalho infantil. Se para Karl Marx trabalho deveria ser humanizado, mais uma vez, para os marxistas, os limites para seguir a teoria são as mulheres e seus corpos. Não é consenso, inclusive é motivo de discussão, se na definição teórica de Marx de trabalho (o qual ele divide em mais de um tipo) a exploração sexual realmente entraria como um “tipo” de trabalho. E, de qualquer forma, suponhamos que as definições de trabalho de Marx abarquem teoricamente a prostituição como trabalho… Devemos rever qual é de fato a prioridade dos “revolucionários”, se é seguir à risca as definições de trabalho teorizadas pelo seu cânone ou se preocupar com o estupro pago sistêmico de mulheres e crianças.
Imagino que ainda não ficou clara a ligação entre o linchamento de mulheres radicais, a defesa ao transativismo e a defesa marxista e transativista pela prostituição como trabalho, portanto, é preciso que se diga: A PROSTITUIÇÃO MATA PESSOAS TRANS. Quando falamos que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans do mundo, porque não nos perguntamos como elas morrem e pelas mãos de quem? De acordo com o dossiê dos assassinatos e violência contra pessoas trans em 2018, dos 163 assassinatos de pessoas trans no Brasil, 158 das vítimas eram travestis e mulheres trans, 4 eram homens trans e 1 era uma pessoa não-binária; mais de 60% das vitimas eram jovens entre 17 à 29 anos. 65% dos assassinatos foram cometidos contra travestis prostituídas, 60% estavam na rua no momento do crime. 80% dos assassinos eram “clientes sexuais” em potencial das vítimas. Realmente, pessoas trans morrem de maneira alarmante no Brasil, mas a sua morte está relacionada aos homens e aos sistemas deles. Travestis morrem graças aos seus cafetões e proxenetas (“clientes”). A maior parte das travestis que se encontram em estado de prostituição foram aliciadas ainda quando crianças, na promessa de uma vida melhor do que o ambiente repressor de suas casas, são levadas para os centros de grandes cidades e coagidas a se prostituir envoltos do fetichismo da feminilidade. Assim como acontece com mulheres prostituídas, essas pessoas, muitas vezes vivendo a quilômetros de suas casas, gastam todo o dinheiro da prostituição para ter onde morar e o que comer.
Se o transativismo e o marxismo realmente se importam com o fato de que o Brasil é o país que mais mata transsexuais do mundo, porque ainda abraçam o discurso de que prostituição é um trabalho, e, obviamente, uma escolha? Porque insistem em perseguir e ameaçar o feminismo radical como se mulheres fossem as responsáveis pelas mortes de pessoas trans? Porque não têm coragem de apontar os verdadeiros perpetradores? Porque o lobby do transativismo não dá voz às pessoas trans que realmente estão morrendo por ser trans, pessoas negras, pobres e prostituídas? Até quando homens brancos falaram por elas? Porque fingem e vendem o discurso de que prostituição só é insalubre por não ser regulamentada? Ainda que, legalmente falando, no Brasil a prostituição não seja crime, prostituição não é emprego, é estupro, e ESTUPRO SEMPRE VAI SER CRIME, quer a lei preveja isso, quer não. Estupro sempre vai deixar marcas que o dinheiro não paga, o estresse pós-traumático, o dano físico, psicológico, a depressão…
Enquanto o liberalismo altamente lucrativo do lobby do transativismo não ser questionado, não haverá mudança. Enquanto mulheres não poderem falar de suas questões e de sua realidade material, não haverá mudanças. Enquanto o marxismo tiver como limite a liberdade das mulheres, não haverá mudança. A revolução será radical, ou não será!
Lara Marinho
Sem as publicações “porque a prostituição não pode ser considerada trabalho sob a ótica marxista” e “prostituição não é trabalho”, disponíveis na página da revista QG feminista, eu nunca chegaria ao lugar de uma crítica da prostituição. A brasilcontrasap devo o entendimento sobre quem são os verdadeiros assassinos de pessoas travestis no Brasil.
Os dados coletados aqui sobre a morte de travestis e pessoas trans podem facilmente ser achados no dossiê: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf
O texto completo de Monique Witting, não se nasce mulher, está disponível, dentre outros sites, no: https://www.passeidireto.com/arquivo/64313029/nao-se-nasce-mulher-monique-wittig