A medicalização das crianças que não estão em conformidade de gênero e a vulnerabilidade da juventude lésbica.

Lara Marinho
6 min readApr 5, 2020

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Tradução do texto de Charlie Evans, possível acessar o original em: https://medium.com/@charlie.evans/the-medicalization-of-gender-non-conforming-children-and-the-vulnerability-of-lesbian-youth-10d4ac517e8e

Mês passado eu marchei na parada do orgulho gay de Manchester ao lado de feministas radicais lésbicas. Ano passado eu tuitei que elas não me representavam. E, na década passada, eu não me identificava como uma mulher.

O tempo me mudou, e por uma boa razão…

Uma década atrás eu tinha 17 anos, eu amarrava apertado os meus seis e raspava a minha cabeça para mostrar que não era uma menina. Eu sabia que era um menino, porque odiava como os meus seios chamavam a atenção, odiava a minha menstruação e odiava como os meninos olhavam para mim. Eu sabia que era um menino porque adorava carros, caminhões, lama, boxe e meninas. Eu sabia que era um menino porque eu não me comportava “como uma menina”, nada na minha personalidade era “feminina” e a ideologia trans diz que todo mundo SENTE o seu gênero. Eu não me sentia uma menina. Eu sabia que era um menino porque eu preenchia os critérios para o diagnóstico de disforia de gênero: uma forte rejeição a brinquedos e roupas tipicamente femininas, a maioria dos meus amigos eram garotos, eu tinha a percepção de que meus sentimentos eram tipicamente masculinos e eu desejava ser tratada como um menino. Quando falei sobre isso com os meus amigos mais velhos ou em chats na internet, a mensagem foi afirmativa. Ninguém encorajava a ideia de que está tudo bem estar fora dos esteriótipos de gênero. Em vez disso amigos e profissionais da saúde “reafirmaram” o meu gênero. “Sim, você é um menino.”.

nessa época eu fui doutrinada na crença de que meninos e meninas precisam agir e sentir de uma maneira específica e se não o fazem é porque são do sexo oposto presos no corpo errado. Eu fiquei obcecada em tentar ter passibilidade como menino, minha saúde mental despencou ainda mais… Eu odiava o meu corpo errado e queria que o mundo visse a minha verdadeira identidade.

Só que ela não era verdadeira, o cérebro de adolescente engana…

Hoje reconheço que a ideologia trans me convenceu de que eu poderia me identificar com o grupo dominante. Na época eu estava infeliz por não poder me casar com uma mulher, infeliz por não ter uma família como as únicas famílias que eu tinha visto até então. A ideia de que eu poderia me identificar para fora dessa opressão e me tornar um homem parecia libertadora… Existem poucos estudos e estatísticas sobre a destransição, mas posso garantir que há milhares de nós. Nossas vozes são abafadas porque somos vistas pela comunidade queer como uma consequência inconveniente desse movimento. Nós somos apenas o dano colateral de um “bem maior”. Muitas — talvez a maioria de nós — somos lésbicas que não se encaixam com o gênero, criadas em lares onde os papeis de gênero para meninas e meninos eram rigidamente definidos, não é atoa que tantas achem que são meninos. A maioria desiste de transicionar na mesma idade que eu, por volta dos 25 anos… Isso não é coincidência.

Essa é a idade em que seu cérebro se desenvolve por completo.

De novo… não existe ainda um estudo científico de verdade sobre isso. Mas eis a minha teoria, enquanto bióloga: Durante a adolescência seu cérebro é quase que completamente reconfigurado. O córtex frontal é a ultima parte a se desenvolver e ele é responsável por coisas muito importantes como controlar impulsos, resolver problemas, tomar decisões, ver o impacto de suas escolhas no seu futuro. É a parte que nos torna adultos responsáveis. É por isso que os adolescentes agem de uma maneira tão irresponsável. A maturação do cérebro é causada pelos hormônios sexuais, que aumentam durante a puberdade especialmente para desenvolver no cérebro a habilidade de se lembrar, lidar com as emoções e processar interações sócias, até onde sabemos essas mudanças são permanentes. Será que a razão pela qual a maioria das mulheres desistem de transicionar na casa dos 20 seja porque é quando seus cérebros estão totalmente desenvolvidos?

Se sabemos o papel vital que os hormônios tem no desenvolvimento do cérebro por que continuamos dando para os pré-adolescentes hormônios bloqueadores de puberdade para impedir esse desenvolvimento? Por que damos a adolescentes a opção de tomar hormônios do sexo oposto quase dez anos antes da parte do cérebro responsável por tomar decisões e entender as consequências estar desenvolvida? Não há provas de que os hormônios bloqueadores sejam seguros, essa geração é cobaia e o fato de que tantos cientistas e médicos estejam calados é criminoso. É também muito preocupante pois assim que um adolescente começa a tomar bloqueadores de hormônios é muito provável que ele vá transicionar. Pelo que eu vejo, é porque tomar os bloqueadores faz o ato de desistir algo incrivelmente difícil, destrói quase que completamente as chances do cérebro de amadurecer corretamente para lidar com os problemas relacionados ao corpo. Deveria haver uma grande preocupação em relação à isso, mas as pesquisas e debates sobre esse tema dentro da comunidade científica, estão quase ausentes.

Onde deveria haver pesquisas, há silêncio.

Ao invés disso ouvimos o tempo todo que os hormônios bloqueadores da puberdade são seguros, mesmo que os cientistas sugiram que eles possam ser perigosos.

A juventude lésbica é muito vulnerável a esse tipo de ideologia, principalmente porque muitas não se encaixam nas conformidades de gênero. Juntando a isso o fato de que o sexo feminino é oprimido, muitas jovens lésbicas se encaixam no diagnóstico para começar a tomar bloqueadores de hormônios em idades como 10 anos. É alguma surpresa que num mundo onde oprimem lésbicas e endeusam homens hétero, tantas garotas queiram ser homem? As jovens lésbicas de hoje enfrentam desafios que não existiam quando tínhamos essa idade, nós não tínhamos lésbicas em quem nos espelhar. Já elas, estão cercadas de muitas pessoas que se intitulam lésbicas, estas pessoas são muitas vezes machos que dizem para elas que ser lésbica é “transfóbico” porque elas deviam se atrair pelo “gênero” e não pelo sexo. Com tão poucos grupos e comunidades para moças lésbicas que rejeitam essa ideologia, existem poucos lugares que elas podem encontrar real apoio. Não temos dúvidas de que isso leva muitas para o caminho da transição. Aceitar machos em sua orientação sexual é uma pressão rígida feita às lésbicas, mas isso não é esperado dos homens héteros.

Eu não poderia prever que dez anos depois eu não sentiria mais ódio de mim. Eu não poderia prever que se deixasse meu cérebro amadurecer eu superaria essa ideia de que haveria algo como um “cérebro de menino” ou um “cérebro de menina” e de que eu teria nascido com o errado. Se eu pudesse enviar uma mensagem para dez anos atrás, a mensagem seria essa: você não nasceu com o corpo ou o cérebro errado. Você nasceu você. Haverá dias em que você irá se odiar, haverá dias em que irá se olhar nua em frente ao espelho beliscando a sua carne e pensando por que entre tantos corpos com os quais você poderia ter nascido, você nasceu justamente neste. Mas, não há nada que você possa fazer como homem, que você não possa fazer como mulher, não existe uma desconexão entre seu corpo e seu cérebro, o que existe é um ponto de vista sexista sobre o que é ser um homem ou uma mulher.

Deixem seus cérebros amadurecerem antes de tomar decisões que vão mudar suas vidas para sempre.

Ser mulher não é um sentimento, não é uma emoção, é apenas nossa biologia. Isso não define nossas vontades, nossos hobbies ou nossas roupas. Rejeitar ideias tradicionais de como deveria ser uma mulher não faz de você um homem. Eu não tomei hormônios bloqueadores, mas se tivesse tomada, não teria dúvidas de que eu não estaria aqui hoje confortável com meu próprio sexo. Não sei se eu teria me arrependido, ou se teria vivido minha vida pela metade, sem saber o que a verdadeira liberdade significa.

Liberdade não é mudar seu corpo para se encaixar na sociedade, liberdade é mudar a sociedade para se encaixar à você.

E está na hora de aceitarmos que nenhuma criança nasceu no corpo errado.

Um agradecimento especial à página “no corpo certo”, por desponibilizar à fala de Charlie Evans no youtube:

https://www.youtube.com/watch?v=-JazgA3AdUE

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Lara Marinho
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Written by Lara Marinho

Historiadora, mestranda. Escrevo por paixão, por ofício, por necessidade...

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