Análise da série “Feel good", original netflix, a partir de uma perspectiva lésbica.
Obs.: Contém spoilers.
Ser lésbica nesse mundo é um imenso vazio de representatividade real da potência que é uma mulher se negar a relacionar-se com homens e viver a sua vida centrada em outras mulheres. É um vazio de representatividade sobre o quão profundo e cuidadoso uma relação lésbica pode ser, quando, entre duas ou mais mulheres, ocorre o comprometimento de assumir a responsabilidade de libertar-se todos os dias das amarras patriarcais e criar novos relacionamentos saudáveis. Mas, o que está acontecendo ultimamente é que mulheres em relacionamentos lésbicos estão começando a ser representadas aqui e ali em séries e filmes. Alguns dessesfilmes são incríveis, responsáveis, feito por mulheres lésbicas que foram além e conseguiram sensibilizar de verdade, mas alguns programas apenas fazem com que mulheres lésbicas se sintam "engatilhadas". A sensação de gatilho geralmente é algo que aperta o nosso peito e nos faz reviver cenas dessa espécie de estresse pós-traumatico ao qual quase todas as mulheres lésbicas estão sujeitas na nossa sociedade.
A Netflix é uma grande potência mundial e o seu lado "progressista" está atrelado a ideologias liberais completamente nocivas às mulheres, como a "liberdade feminina" por meio da prostituição, a uma infantilização e "açucarada" na causa LGBT, e, em alguns casos, de maneira muito mal disfarçada, à pedofilia. Em Feel Good a Netflix aposta em basear-se em algumas ideias vazias do movimento LGBT, como a bissexualidade inata e consequente fluidez da sexualidade de todos os seres humanos, a confusão entre a reprodução de esteriótipos de género e a transexualidade e a negação de uma definição, de rótulos, em pessoas. Ideologias essas que são usadas para, no fundo, poder continuar a reforçar o sistema misógino no qual estamos inseridos.
Feel Good é sobre uma mulher que prefere não colocar-se em rótulos de sexualidade, negando ser lésbica (apesar de apenas ter nutrido sentimentos e desejos genuínos por outras mulheres), que se apaixona por outra mulher, uma "hétero" que a todo momento projeta nela sensações de insegurança por não ser um homem e ter um pênis.
Feel good, resumidamente, é um amontoado de gatilhos. E agora eu vou provar o porquê:
1- mulheres lésbicas se relacionarem com mulheres heterossexuais é algo extremamente problemático, mas muito fetichizado e indiretamente incentivado pela indústria do pornô -que fetichiza mulheres heterossexuais se relacionando entre si para o prazer do homem. No entanto, aqui, na vida real e na luta concreta, mulheres lésbicas tentam alertar às suas companheiras os perigos emocionais de se entregar para pessoas que não irão valoriza-las porque ainda vêem nos homens o exemplo supremo de par romântico/sexual ideal. Ficar com mulheres heterossexuais, para lésbicas e bissexuais, é só mais uma forma de se machucar exaustivamente em um mundo onde já não é fácil ser você mesma.
Além disso vale ressaltar que, muitas vezes, mulheres hétero se atraem por lésbicas e bi não porque estão prontas para romper as barreiras da heterossexualidade compulsória em que vivem, mas sim para o próprio ego, por fetiche ou como um band-aid em que a mulher lésbica/bi estará ali apenas para curá-la temporariamente de suas desventuras ao se relacionar com homens.
2 - Mae não é necessariamente bi e George não é necessariamente hétero. Considere que estou analisando a personagem de acordo com o que foi dado na série, sei que Mae, a comediante da vida real ainda se afirma bissexual, mas a personagem dela nos dá muito pano para a manga para falar de um assunto: heterossexualidade compulsória.
Mae teve uma juventude conturbada, grande parte do problema foi não se sentir a vontade em lugar nenhum e se sentir estranha - uma mulher incompleta, um homem fajuto. Sua dependência em drogas e as consequências disso muito têm haver com esse fato simples: ela não gostava de se vestir segundo os esteriótipos da feminilidade e gostava de mulheres. Seria Mae realmente bi? Todas as vezes que ela amou alguém, foram mulheres e, na série, a única vez em que ela tentou transar com um homem foi quando estava no fundo do poço, sem casa, dinheiro e usando droga pela primeira vez em dois anos... Essa cena foi particularmente dolorosa para mim, pois ficou claro que no seu momento de maior vulnerabilidade ela recorreu a heterossexualidade compulsória para poder se livrar dessa situação extrema em que se encontrava, amparada no mito de que homens são nossos protetores naturais. O que Mae queria naquele momento era segurança, era que seu sofrimento passasse e ver uma mulher que talvez não goste realmente de homens nessa situação é gatilho.
E quanto a George? Ela é uma garota rica, branca e considerada "recatada", de acordo com sua melhor amiga seu último relacionamento com um homem teria sido a cinco anos... E então ela vê Mae e sente atração por ela automaticamente, assistindo seus shows e demonstrando interesse. A ideia que seus amigos e familiares têm é que George havia ficado sozinha por tanto tempo porque era solitária e quieta, mas, talvez ela não tenha se relacionado com homens porque não sentia real afeto e atração por eles… Mas, por viver em um meio muito heteronormativo ela nega isso para todos, até para si mesma, e quando começa a se relacionar com Mae enxerga isso como uma excessão que terá prazo de validade, pois uma hora ela precisará voltar para o universo hétero para poder casar e ter filhos.. Com certeza ver a cena em que George pede para Mae "gozar dentro dela" é gatilho certo, mas, mais triste ainda é saber que George só pensou nisso porque uma de suas amigas de infância estava grávida e por pensar em todo o processo de gravidez e no quanto a sociedade estava valorizando sua amiga, que agora carregava um troféu, por ser uma mulher hétero recém casada e grávida. Ela foi levada não só pela heterossexualidade compulsória, mas também pela maternidade compulsória.
3 - Mae não conseguir definir-se não é cool, não é descolado, é problemático. Ela não tem coragem de olhar pra si mesma e definir se gosta apenas de mulher, se gosta de homens também. E quando a heterossexualidade compulsória de sua namorada aflora ela não consegue definir-se nem mais como mulher, colocando-se em uma caixa de não binariedade apenas para poder fugir do fardo de ser mulher e sua namorada gostar dela "não por isso, mas, apesar disso", parafraseando-a. O que Mae sente é no mínimo muito triste, esses sentimentos são fruto de um sistema de lesbo-ódio e extermínio de mulheres lésbicas, já que faz com que muitas delas questionem o motivo de sua existência no mundo.
Enfim, a série é problemática em muitos pontos, para as mulheres lésbicas e bissexuais o que fica é a sensação de gatilho, de irresponsabilidade para com situações que são sérias e delicadas. E para pessoas hétero, o que será que fica? A normalização de relações lésbicas doentias, fracas, onde falta algo — que é o pênis, representado o tempo todo pelos dildos que as personagens usam para transar. Com certeza essa série não retrata a realidade de relações lésbicas saudáveis, libertas da influência patriarcal, o que ela retrata é aquilo que fugimos o tempo todo e ela só é possível como realidade porque existem milhares de mulheres pressas nas teias patriarcais e hétero compulsórias, que as fazem vítimas de uma série de abusos mentais e sexuais. Qualquer sapatão que assista essa série irá se colocar na pele de Mae, e isso é cruel e insensível. O final feliz de Mae não seria voltar com a sua namorada indecisa, que tem medo de assumir-se e que a faz se sentir impotente, nem mesmo seria ficar com qualquer outra pessoa ( como Lava, a garota lésbica e bem resolvida que ela ignorou e machucou). O que Mãe precisa é estudar sobre feminismo lésbico, é cercar-se de mulheres estáveis, orgulhosas de si, que têm uma relação saudável com sua sexualidade, e cuidar de seus traumas, que com certeza são muitos. Esse seria o final feliz que todas as mulheres que amam mulheres merecem: parar de sentir-se erradas no mundo, assumir que o mundo é patriarcal (até mesmo dentro de refúgios gays) e fortalecer-se para viver nele como um ponto de resistência autêntico.
Eu sou Lara Marinho, 23 anos, mulher lésbica prestes a se licenciar em história pela Universidade Federal de Goiás.