Eu quero viver mais que a violência.
Essa nota é sobre como viver e não deixar que a raiva, o ódio cresça em si como um cancêr que acaba nos matando.
Existem dias que a revolta me consome... Sinto uma dor na garganta desde que eu era criança, quando estou com algo entalado na garganta, sempre identifiquei essa dor como a manifestação física da minha revolta. As vezes é algo que precisava falar, as vezes é sobre algo que vi, mas, sempre é uma injustiça.
A injustiça é a violência explicitada em ações. Quanto mais olhamos para ela, mais ela se posta poderosa na nossa frente, mais ousada ela fica... Se expõe como algo bem maior que nós, além do nosso alcance. Ela nos lembra da nossa condição de indivíduo e, se não tomarmos cuidado, entra dentro da gente e nos mata.
Mas, eu quero viver mais que a violência. Essa frase está em um escrito de Brecht, no livro "as histórias do Senhor K". Com sagacidade Brecht nos fala que, um dia, o senhor K. estava proferindo verdades perigosas sobre a violência para seus alunos, quando ele percebe que os alunos estão com os olhos arregalados. Ao olhar para trás ele se depara com a violência e o senhor K. se cala ao encontrar a violência. Ela pergunta sobre o que ele estava falando, e ele responde "estava falando bem da violência". Ele sabe que a violência o mataria se ele a enfrentasse ali, sozinho. E, como estratégia de sobrevivência e sagacidade, ele silencia as palavras que proferia para seus discípulos antes da violência chegar. A violência vai embora e seus discípulos, indignados, perguntam sobre sua falta de fibra, de coragem, ele responde: "eu não me importo com a minha fibra, eu quero viver mais que a violência".
Andre Lorde, por outro lado, fala da necessidade de transformar o silêncio em ação. "Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio?", ela, como uma mulher negra e lésbica, percebe que o silêncio não havia salvado-a. Ficar em silêncio não adiantou. Para alguns, não há silêncio que disfarçe os corpos marcados como subalternos, como estranhos. Acredito que ainda que Audre Lorde ficasse em silêncio na frente da violência, ela poderia sofrer as consequências de ser quem ela é.
Para mim, o que percebo é que a injustiça do capitalismo, do imperialismo e genocídio tendem a nos deixar com uma tristeza profunda, esse nó na garganta que não sara. Mas, vivo para buscar estratégias de como sobreviver a isso, busco como não deixar que a violência vença ao me matar. Transformar a tristeza em raiva, em potência, em ação estratégica e em amor às minhas, não é fácil, mas, essa tem sido minha missão.
Sei que ficar em silêncio não me salvará, é preciso adotar estratégias para sentir esse nó na garganta diminuir. Escrever é uma delas. Proclamar a importância da arte, música e cultura. Amar e ser amada, construindo uma rede de afetos que nos protege como um escudo humano, também. Escrever sua dor, cantar sua dor, dançar sua dor, é proclamar que nós vamos viver mais do que a violência. E que essa vida se torne a resistência em si. Que essa vida ache brechas para lutar... De modo que sejamos capazes de transformar a nossa dor em ação, teoria em práxis.
Lara Marinho,
Professora de história, estudante de direito e mestranda na PPGH/UFG.