Heterossexualidade compulsória e Covid-19: o que não se diz sobre a violência contra às mulheres.
Por: Jessica Gamboa Valdés — @autonomiafeminista
tradução: Lara Marinho — @frontfeminista
“Este é o ponto crucial — penso eu — do medo a que a queda do regime patriarcal significa, cujo principal suporte e manifestação é o Estado de direito, que recai sobre nós. Há meses que os meios de comunicação mascaram esse medo, mesmo que ele não se conecte ao final do patriarcado, mas, com a luta fratricida entre o seu Direito e o meu. A minha resposta é a política das mulheres, que consiste na tomada de consciência e na relação entre nós mesmas. Portanto, em fazer uma sociedade feminina e simbólica livre. Faz tempo que sabemos que a violência contra as mulheres era e é violência em torno de SER (mulher), e não uma consequência dos papeis de gênero nem da desigualdade de classes.”
- Maria-Milagros Rivera Garretas
No início do mê de março a OMS declarou oficialmente a existência de uma pandemia global ocasionada pelo corona vírus, enfermidade que em poucos meses se fez cada vez mais perigosa e mortal. Não obstante, como resultado das medidas de confinamento para sobreviver à pandemia, a violência contra as mulheres aumentou. Assim nos apontam distintos organismos internacionais e feministas que vão alertando sobre essa realidade a nível mundial, que se tem vista refletida nas altas taxas de denúncia e solicitação de refúgios nos centros de apoio para mulheres. Incluído no discurso midiático, podemos entender a violência de gênero como a “outra pandemia”, pelos seus efeitos negativos e mortais para as mulheres, assim como o Covid-19 o é neste momento.
Devido a esta situação, se pede aos governos, e a seus governantes homens, que tomem as medidas de proteção neste âmbito. N o entanto, como as mulheres nas sociedades patriarcais modernas não encarnam nenhum valor social, dificilmente serão uma prioridade política. De modo que, vamos seguir presenciando um aumento exponencial da violência. Os índices de diferentes países revelam que, eles devem ter não apenas enfrentado devastadoras perdas pelo Covid-19, como também à vida de mulheres assassinadas pelos seus parceiros, parentes e maridos. Também tem aumentado os índices de violência sexual contra crianças e adolescentes perpetrado no espaço “privado” da família.
Esta pandemia fez com que muitos véus caíssem, principalmente o véu que cobre a violência de gênero que se dissolve em sua própria ideia, bem, fazer da diferença sexual um tema de gênero invisibiliza com ele a raiz da violência patriarcal. Carole Paterman apontou em sua tese doutoral “O contrato sexual”, que como resultado do contrato social se converte e reduz a diferença sexual a uma diferencia política. É definir a liberdade civil dos homens e a sujeição — naturalizada — das mulheres. E é na base dessa organização política-social-sexual que se consolida a aparente divisão das esferas públicas e privadas das sociedades modernas. Da mesma forma, se tem pretendido borrar e omitir a estreita relação de direito patriarcal moderno com o contrato sexual, ao reduzir a violência dos homens contra às mulheres ao âmbito do doméstico e intra-familiar. Não se bastando a isso, se foi instalado uma diversidade de gêneros onde a diferença sexual se encontra completamente diluída.
Estas dominações e categorias, como a de gênero, produzidas pelo modelo contratualista moderno — de origem patriarcal — são funcionais aos estados — governos — e a suas políticas públicas e a todos os organismos e instituições que reproduzem, em qualquer de suas formas de contrato, o pacto — não pacífico — entre homens para apropriar-se e distribuir entre si os corpos das mulheres e seus frutos, como diria María-Milagros Rivera Garretas. Neste sentido, estas fundamentações escondem o fundamental e o fundador da violência contra as mulheres: a imposição de uma convivência entre os sexos regulada pela instituição da heterossexualidade compulsória. Adrienne Rich explica claramente as sequelas do que significa esta obrigatoriedade para as mulheres, em tempos de pandemia ou não.
Quando se alerta e denúncia que por causa da pandemia se observa um aumento generalizado da violência de gênero nos espaços domésticos e familiares, o que se está dizendo é que as mulheres -TODAS — independente de país, cultura, etnia, raça idade e classe social, são obrigadas a viver no regime político-social patriarcal da heterossexualidade obrigatória como algo inerente a existência feminina. Portanto, o que não se questiona é, precisamente, a convivência naturalizada com os homens. Assim, se universaliza como um feito político, já que, aparentemente a sociedade inteira dissimula, tolera e acomoda a violência contra as mulheres. Em síntese, não podemos seguir cegas ante esta realidade, é necessário que nós nos despojemos dos nossos próprios véus, para enfim ver o porquê que sobrevivem as relações baseadas em um contrato social-sexual, e como todas as instituições legitimam a heterossexualidade obrigatória, como forma natural de convivência entre os dois sexos, apesar da violência sistêmica de homens contra mulheres.
Por sua parte, as explicações que provem de instituições como a ONU-mulheres e organizações de vozes feministas, deixam muito a desejar à respeito do assunto. Não é possível que, a esta autora, e com tanta produção teórica e de pensamento feminista, se continue atribuindo o porquê da violência contra as mulheres, no contexto de pandemia, às condições econômicas e de isolamento em que se encontram as mulheres. Sabemos que esses são fatores agravantes à violência, mas não a sua raiz.
Do mesmo modo, me parece tremendamente grave o fato de se justificar o agressor e seu comportamento como efeito de uma crise emocional provocada pela frustração ante a perda de emprego, ou por este ter de conviver em um espaço compartilhado com “crianças e outros(as) integrantes da casa” de forma permanente e obrigatória, ou por questões de restrição de circulação em espaços públicos que impeçam a recreação e o espaçamento físico e mental deste indivíduo.
(…)
Em síntese:
- A convivência forçada de mulheres com homens, sejam estes agressores ou agressores em potêncial — em seus variados graus — é a instituição da heterossexualidade compulsória como regime político-sexual das mulheres. A pandemia do Covid-19 à piora.
- A heterossexualidade obrigatória é a materialização do contrato sexual-social moderno que se traduz em contrato matrimonial e em seus derivados: coito e reprodução, incesto e violação, pornografia e prostituição. Até chegar ao ponto do massacre dos corpos das mulheres.
- Imposição do modelo sexual masculino, através da pratica sexual exclusivamente penetrativa que coloniza os corpos femininos — a vagina — assim como à pisque feminina, para obrigá-la a coincidir o prazer com a reprodução. Porém, são questões totalmente opostas.
- A heterossexualidade compulsória coloca como centro o falo, como medida de prazer sexual, privando a mulher de seu próprio prazer , ao cancelar o orgasmo feminino, isto é, o clitoriano.
- a obrigação da maternidade, assim como da heterossexualidade, se impõe como um destino para qualquer mulher, com pandemia ou não.
De modo reflexivo, considero que, se a violência que afeta as mulheres segue sendo eclipsada por terminologias e concepções que não tem a capacidade de ir a raiz do problema, provavelmente será muito difícil erradicá-la, porque não se trata de demonizar a relação heterossexual, mas, sim, de analisá-la como uma imposição político-sexual, supostamente natural, e que cumina com a construção histórica da relação desigual entre os sexos, tendo sido o refúgio mais elementar onde se consolidaram las violências contra a mulher. Parafraseando Carla Lonzi, tudo bem a heterossexualidade, contanto que não tenha um preço.
Texto original na página: http://autonomiafeminista.cl/