Lara Marinho
4 min readOct 1, 2024

Meu coração bate do lado esquerdo do peito.

Meu coração bate do lado esquerdo do peito, talvez por isso seja tão difícil encarar os fatos: network não é algo que vem de graça. Network é só mais uma forma de discurso meritocrata, de dizer que nós somos responsáveis pelo nosso sucesso de acordo com a quantidade de conexões que conseguimos fazer com pessoas bem influenciadas. Se falhamos, a falha foi mérito nosso. Isso me lembra o tempo da escola, quando os alunos tentavam por tudo conseguir amigos, andar com os populares, mas, sempre tinham aqueles que por cor, classe ou sexualidade, não conseguiam se enturmar. A crueldade do “network” nos faz acreditar que em um mundo econômico de homens, brancos, heterossexuais e extremamente neoliberais, se não prosperamos, a culpa é nossa. Como se existisse carisma e intelecto no mundo que os convencesse que nós somos dignos de algo para além do precário. Nós não conseguimos fazer o tal do network. Mas, o que é preciso para ter network? Ser “popular” no mundo dos adultos? Ser “legal”, ter contatos?

Quando me formei na história, em um misto de méritos e privilégios que me propiciaram ser uma das primeiras alunas da turma, senti que não tinha contato nenhum que me propiciasse ter acesso aos colégios, cuja forma de contratação se resume, 90% do tempo, em indicações. Percebi a importância do network a partir do momento que sai do universo acadêmico da UFG. Mas, hoje em dia, sei que eu tive sim muitos contatos, convivi com quase todos os professores e era bem quista entre eles, também levei muitas amizades e coleguismos. Então, onde falhei no network? Falhei por não ter contato com donos de colégios e administradores. Mas, mesmo se eu quisesse, essas pessoas não eram acessíveis para mim e eu não tenho o “perfil” esperado para a vaga, ou para ser colega deles. E qual seria o meu interesse em ser colega dos donos dos grandes colégios de Goiânia? Qualquer mulher minimamente emancipada sabe o que elas representam para mulheres e meninas.

Bom, mal e mal consegui romper as barreiras do mercado, ajudada por pessoas que também, mal e mal, conseguiram. Para me profissionalizar e tentar fugir do previsível destino da precarização, entrei no mestrado da UFG e em uma segunda graduação, em uma universidade particular de Goiânia. E sobre essa graduação que quero falar aqui… Eu, uma mulher lésbica, casada, feminista, comunista e vegetariana, estou cursando direito. A primeira coisa que percebi, quando entrei na graduação, foi sobre o quanto me destaquei em relação à turma. Eu era, e digo isso não com arrogância (apesar de que qualquer mulher que ouse dizer isso soaria arrogante), a melhor aluna da turma.

E, diferente da história, onde haviam pessoas com mais conhecimento, mais aplicadas ou com capacidade lógica melhores que as minhas, que faziam a turma ser relativamente equilibrada (isso sem contar o quanto as diferenças sociais eram discrepantes, com pessoas que pegam ônibus de outras cidades, trabalharam durante toda a graduação, realidades que não existem na turma do direito da faculdade particular). Bom, diferente da história, onde essas realidades se perpassavam, no direito, a diferença acadêmica entre eu e meus colegas de turma era e é gritante.

A primeira coisa que pensei, ao entrar no curso e me deparar com essa realidade, foi que lá seria fácil fazer conexões com as pessoas, principalmente com os professores. Se na história eu tinha me destacado, sendo jovem e sem muito conhecimento, no direito seria muito mais fácil. Nos primeiros 2 anos, me dediquei muito para criar conexões com os professores, sentando no primeiro lugar, estudando direitinho, respondendo as questões feitas, evitando deixá-los no vácuo eterno da falta de retorno. Mas, um por um, foram se mostrando hostis a mim, alguns deles inclusive puxando o saco e oferecendo oportunidades para homens por muito menos esforço da parte deles. Além disso, alguns professores foram diretamente hostis a mim, principalmente pelo meu posicionamento politico, que, apesar de eu nunca ter falado nada, emana de mim pelo fato de ser lésbica, da minha postura firme e certeira, enfim, “meu corpo todo me denuncia”, uma vez li, e, para mim faz todo o sentido.

Não existe uma conclusão positiva para esse texto/desabafo, apenas sigo na certeza de que não “venderei minha ideologia” para poder ser aceita minimamente nesses ambientes. Seguirei ocupando esses espaços, ainda que eles tentem me expulsar, e quero crer que existe um lugar para mim que não seja apenas o ostracismo ou a sujeição. Quero crer que vou conseguir fazer o meu próprio território, junto às pessoas que sei que existem por aí, fazendo o certo na área, que não estejam defendendo agropecuarista e empresário, pessoas que só não estão acessíveis a mim ainda, mas, existem.

Quero crer, inclusive, que eles vão tremer quando verem meu nome em uma petição inicial. Quero crer que apesar da burocracia estatal, de que do outro lado quem está julgando também é um deles, eu conseguirei defender mulheres, pelo menos de uma forma melhor do que a defesa que elas encontram agora. Pelo menos com mais humanidade, pelo menos com mais empatia, pelo menos com mais garra. E mais do que crer, o que me motiva a continuar no curso e saber que eu tenho o meu pai por mim, tão diferente mas ao mesmo tempo tão respeitoso. Um traidor de sua classe em muitos aspectos. E todas as pessoas que direta e indiretamente me apoiam. É importante que eu esteja lá. Porque se não sou eu e os meus, não haverá contraditório real. Portanto, eu sigo.

Lara Marinho — professora de história, mestranda no programa de pós-graduação em história, da UFG, e graduanda no curso de direito.

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Written by Lara Marinho

Historiadora, mestranda. Escrevo por paixão, por ofício, por necessidade...

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