O que é lugar de fala? — Djamila Ribeiro
Trecho de livro da filósofa.
No debate virtual, aqui no Brasil, nos acostumamos a ouvir os mesmos
equívocos de Hekman. “Fulana está falando a partir das vivências dela”, como se
essas vivências, por mais que contenham experiências advindas da localização
social de fulana, se mostrasse insuficiente de explicar uma série de questões.
Como explica Collins, a experiência de fulana importa, sem dúvida, mas o foco é
justamente tentar entender as condições sociais que constituem o grupo do qual
fulana faz parte e quais são as experiências que essa pessoa compartilha ainda
como grupo. Reduzir a teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala somente
às vivências seria um grande erro, pois aqui existe um estudo sobre como as
opressões estruturais impedem que indivíduos de certos grupos tenham direito à
fala, à humanidade. O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá
refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo. Inclusive, ela
até poderá dizer que nunca sentiu racismo, que sua vivência não comporta ou
que ela nunca passou por isso. E sabemos o quanto alguns grupos adoram fazer
uso dessas pessoas. Mas o fato dessa pessoa dizer que não sentiu racismo, não faz
com que, por conta de sua localização social, ela não tenha tido menos
oportunidades e direitos. A discussão é sobretudo estrutural e não “pós-moderna”, como os acusadores dessa teoria gostam de afirmar. A questão é que
eles entenderam equivocadamente a questão e acabam agindo, como afirma
Collins, de modo arquetipicamente pós-moderno ao reduzir ponto de vista às
experiências individuais em vez de refletirem sobre locus social. Por isso, seria igualmente um equívoco dizer que essa teoria perde validade
pela existência de indivíduos reacionários pertencentes a grupos oprimidos. E
assim seria porque Collins não está negando a perspectiva individual, mas dando
ênfase ao lugar social que ocupam a partir da matriz de dominação. Por mais que
sujeitos negros sejam reacionários, por exemplo, eles não deixam de sofrer com a
opressão racista – o mesmo exemplo vale para outros grupos subalternizados. O
contrário também é verdadeiro: por mais que pessoas pertencentes a grupos
privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não
deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que
infligem a outros grupos. O que estamos questionando é a legitimidade que é
conferida a quem pertence ao grupo localizado no poder.