Lara Marinho
7 min readMay 24, 2024

Um “resumo”, com muitas aspas, do livro 1 de “O Capital”, de Karl Marx.

A missão de resumir um livro com a envergadura teórica como o Capital tem, traduz-se quase que em uma missão impossível. O capital representa o trabalho de uma vida de seu autor, um resumo de toda a caminhada e trajetória intelectual de Marx, sendo esta a sua obra mais madura. O Capital é um retrato do sistema capitalista, é por meio dessa obra que temos acesso a uma dissecação minuciosa do modelo sob o qual, atualmente, estamos submersos a ponto de quase afogar- nos. Apesar de quase 200 anos separar a obra de nosso momento presente, esta obra não poderia ser mais atual e, infelizmente, realista. A análise que Marx fez da sociedade em sua época, de um capitalismo jovem, se confirmou não só verdadeira, como profética.

Em um modo de produção destrutivo, a cada geração sente-se o buraco da cova na qual o capitalismo cova para si, cada vez mais perto. No atual estágio do capitalismo (modo de produção tão jovem, no entanto, precocemente tardio) vemos o colapso climático emergente, o monopólio global tendendo ao infinito e a alienação - impulsionada pelo domínio midiático - tomando rumos distópicos. Tudo o que acontece no mundo hoje já pode ser experienciado nas palavras de Marx,em suas análises de conjuntura e tendências. Afinal, em um modo de produção, pode-se fazer algumas predições e tudo o que presenciamos hoje são fases que inexoravelmente um modo de produção desta natureza iria passar.

Após essa breve introdução, partiremos para o resumo de fato. Marx decide (dizem que de última hora) começar sua obra pela análise da mercadoria. A mercadoria é a célula primária de qualquer relação comercial. É por meio da mercadoria que qualquer sistema comercial realiza as trocas comerciais que inalgura o que entendemos por comércio ou econômia, os mais antigos e primitivos grupos humanos já produziam mercadoria e realizavam os dois valores básicos de uma mercadoria: valor de uso e valor de troca.

O valor de uso é aquilo que a mercadoria realmente tem para oferecer, sua utilidade. Esse valor de uso pode ser real, como uma vestimenta para aquecer, alimentos e etc, ou podem ser convencionados e/ou fetichizados. Já os valores de troca são os valores fictícios que os seres humanos atribuem às mercadorias para poder trocá-las entre si. A mercadoria, célula do capital, não é algo novo, o que significa que não está na mercadoria a especificidade do capitalismo. E Marx, é importante observar, busca desde suas primeiras páginas, descobrir o que torna o capitalismo um sistema econômico diferente de todos os outros que já conhecemos, como o feudalismo, escravismo, mercantilismo, etc… É buscando na raiz do capital que se encontrará sua especificidade, aquilo que torna-o histórico. O que é uma resposta à visão dos teóricos liberais de que o capitalismo é um sistema econômico natural, que sempre existiu (portanto a-histórico) e que -por natural ser - não pode ser superado.

O apontamento mais importante sobre a mercadoria, em Marx, é sobre um “fenômeno” que as mercadorias passam ao deixarem de ser produtos feitos para consumo próprio - por exemplo, uma horta caseira, um suéter de lã feito à mão para si mesmo - e tornam-se mercadorias. Esse fenômeno, ligado ao valor de uso e de troca, é o caráter fetichista da mercadoria. Toda mercadoria apresenta um caráter social, ela não é apenas um produto e no capitalismo esse caráter social torna-se evidente. Por exemplo, imagine uma loja de produtos de papelaria. Há 50 anos atrás uma papelaria resumia-se em uma loja que vendia materiais escolares básicos e necessários, úteis para a formação estudantil. não há como negar que existe um valor de uso compreensível nesses materiais, ainda que eles não fossem vitais para a sobrevivência dos seres humanos enquanto animais, são itens importantes para a formação dos sujeitos sociais.

No entanto, se pensarmos no que significa “itens de papelaria” atualmente, teremos uma infinidade de borrachas, post its, canetas coloridas e outras tantas mercadorias que só podem ser classificadas como supérfluas. Desse modo, o valor de uso dessas mercadorias, assim como de carros, roupas e itens de luxo, são valores abstratos. Valores que não representam o uso material, a utilidade real dessas mercadorias (muitas delas não têm utilidade). O valor dessas mercadorias é psicológico, social, abstrato. É, em última análise, um fetiche. Essas mercadorias são lidas como algo que têm um “poder” próprio, quase mistificado. E, no capital, a tendência é produção em escala de mercadorias fetichizadas, cujo desejo e necessidade é produzido artificialmente e embutido nos consumidores por meio de processos de alienação. O segredo do fetichismo é o falseamento do valor de uso, criando-o e tornando-o extremamente necessário, de modo que o valor de troca também é supervalorizado. Criando produtos cada vez mais caros.

Assim Marx fecha seu primeiro capítulo, os próximos dois capítulos são sobre o processo de troca de mercadorias, sua evolução histórica e a abstração dessa troca que traduz-se em dinheiro. O dinheiro é, então, uma abstração, uma representação que rotula as mercadorias com valores. Esses valores podem flutuar, assim como o valor da própria moeda flutua. No capítulo 4, Marx irá começar a discorrer sobre um dos mais importantes temas de seu trabalho: a transformação do dinheiro em capital. A transformação do dinheiro em capital começa com a compra e venda da força de trabalho.

A compra e venda da força de trabalho, no capitalismo, se dá através do uso de dinheiro. O trabalhador, desprovido de outros meios, vende a sua própria força de trabalho como mercadoria. E o que ele ganha em troca é o salário. O salário é, na verdade, um retorno pelo seu trabalho, por uma parte de seu trabalho, mas, não o todo. E aqui Marx vai conceituar a produção do mais valor (ou mais valia). O mais valor é o excedente de trabalho que um trabalhador é capaz de fazer que não é pago ao trabalhador. Esse excedente pode ser explorado através do tempo (mais valia absoluta), por exemplo, uma pessoa trabalha 8h diárias e 6 dias por semana, mas, o trabalho necessário para a manutenção de suas necessidades seria de 3h diárias, 4 dias por semana. Esse excedente de tempo é um trabalho gratuito, que é destinado a transformar o capitalista de detentor de dinheiro em detentor de capital, de lucro.

Por outro lado, o capitalista pode explorar o trabalhador através do desenvolvimento da maquinaria (cap. 13) e da intensificação do trabalho: trabalhar mais, na mesma quantidade de tempo. O que se caracteriza como a mais valia relativa. De modo que, diferente do que muitos economistas liberais defendem, de que o capital se gera através da valorização do produto (produzindo por 5 reais e vendendo por 10), o que geraria uma reação em cadeia de superfaturamento de produtos, o lucro vem, na verdade, da exploração do trabalhador, do uso do trabalho gratuito do mesmo. Por exemplo, imaginemos um professor que dá 20h semanais de aula, para aproximadamente 50 alunos, que pagam 600 reais de mensalidade cada um, mas, o professor recebe 1500 reais de salário. Esse professor recebe o equivalente a 2 alunos e meio. O excedente de alunos, de tempo, de trabalho, é um trabalho gratuito, não remunerado.

Essa realidade do capitalismo, atualmente, chega a um novo patamar, cada vez mais mercadorias inúteis são produzidas, cujo custo é a exploração da própria natureza, essas mercadorias, fetichizadas por suas marcas, podem chegar a preços absurdos. Os trabalhadores trabalham cada vez mais, de maneira cada vez mais flexibilizada, com menos garantias. As leis trabalhistas, duramente conquistadas, são desmanteladas, a qualidade de vida chega a um nível de estresse, de problemas de saúde e má alimentação (industrializados, agrotóxicos e alimentos cancerígenos como opção mais barata), alarmantes.

Os governos tendem cada vez mais ao neofascismo, a um “anarcocapilatista” que promove o fim do estado para o povo, um eatado mínimo que serve ao grande capital. Os pequenos negócios (pequena burguesia, comerciantes e pequenos produtores) são engolidos pela concorrência dos monopólios burgueses. A violência estatal se agrava. Enfim, o capital, em sua espiral ao infinito, em sua expansão exponencial, destrói, em 300 anos, um mundo que serve de habitação para a espécie doa humanos, enquanto sociedades, há mais de 10 mil anos.

Muitos defendem que esse sistema não é o mais cruel que existe, que é um sistema de liberdades individuais, que não é escravagista e nem ditador (apesar da democracia burguesa ser uma farsa que disfarça a ditadura burguesa, a antítese da ditadura do proletariado). Mas, com certeza, não há como negar que este é o sistema que mais tende a levar a humanidade a seu fim, o mais destrutivo de todos os sistemas econômicos e modos de produção já visto. Mark Fisher, um escritor marxista, propõe o fim da perspectiva realista capitalista, essa perspectiva de que já não temos saída, alternativas a esse modo de produção. De que é mais fácil aceitar e esperar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mas, como diria Rosa de Luxemburgo, o capitalismo tende à barbárie. Nosso dever é crer e organizarmos nesse sentido, enquanto classe, enquanto sobreviventes da barbárie, e lutar para que vençamos o fim do mundo, e possamos assistir ao fim do capitalismo, esse sistema tão bem definido, analisado e escancarado por Marx, até a raiz. Se existe um sentido de perceber a atualidade e a importância de ler Marx 160 anos após o lançamento do capital, o sentido é esse.

Esse resumo foi produzido para a matéria de economia política, no curso de direito. Achei interessante não desperdiçar o texto que produzi, publicando-o aqui.

Lara Marinho.

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Written by Lara Marinho

Historiadora, mestranda. Escrevo por paixão, por ofício, por necessidade...

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