Uma análise sobre os contos do livro Amora, de Natalia Borges Polesso.

Lara Marinho
3 min readOct 25, 2020

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Parte III

O conto “flor, flores e ferro retorcido” do mesmo livro, é um conto muito sensível, já que se trata sobre a vivência do apagamento lésbico ainda na infância e proporciona à maior parte das leitoras uma sensação de nostalgia e entendimento de si. A personagem principal, uma criança com mais ou menos 7 anos, certo dia ouviu os pais e vizinhos comentarem sobre uma vizinha que tinha uma oficina mecânica, eles estavam comentando sobre o fato dela ser “machorra”, a garotinha, que estava por perto brincando e ouvindo a conversa dos adultos indagou sobre o que seria aquilo. Nesse momento podemos perceber os primeiros sinais de apagamento lésbico, já que, desde pequenas, vivemos em um mundo cuja realidade é heterossexual: os casais de pessoas mias velhas, as novelas e seus romances e beijos, os filmes — até mesmos os filmes infantis, cuja presença de casais de princesas e príncipes é constante, — ou em desenhos animados. Enfim, a realidade é completamente heterossexualizada e quando mulheres lésbicas chegam ao universo de crianças é por meio de sussurros de adultos, insultos religiosos ou outras formas que fazem o assunto parecer misterioso, errado e proibido.

A mãe da personagem principal, sem querer explicar o que de fato significa ser “machorra”, se exaspera e diz para a criança que se trata de uma doença. A menina se compadece, e após alguns dias de reflexão sobre o estado de saúde da mulher, resolve levar flores para a vizinha doente. Após esse episódio a menina sofre um castigo pela mãe, que a castigou por ter descoberto que a menina conversou com a vizinha e disse ficar sabendo que ela era doente e o desentendimento da criança do porquê aquela mulher aparentemente saudável estava gravemente doente. Nesse meio tempo ela conversa com a vizinha pela primeira vez e percebe que além de educada, ela era realmente linda. A criança olha para a mulher e sente uma espécie de admiração, uma sensação sutil de que existe algo que difere aquela mulher da mãe dela, e não é uma doença. Quando a menina cresce ela passa a usar os mesmos sapatos que essa mulher que ela viu na infância usava, uma prova de que crianças percebem o ambiente em detalhes, as roupas que as mulheres costumam usar, a forma de se portar. E tendem a sentir admiração por pessoas com as quais se identificam, de alguma forma.

A menina, ao crescer, provavelmente se tornaria uma mulher lésbica, pelo que induz a história. E a mulher que ela viu, por um curto espaço de tempo, na infância, foi o suficiente para criar nela uma referência de vida para além da vida que seus pais levavam, para além da vida que lhe era apresentada até então. Um exemplo, já abordado, da maneira como a mulher adulta influenciou na vida da menina em termos de referenciais é o fato de que quando essa menina cresce, ela passa a adotar o mesmo estilo da mulher que ela viu quando criança: sapatos alpargata.

Mulheres lésbicas não têm referências de si mesmas, não tem história, são apagadas. A história lésbica é escrita de maneira árdua por mulheres que dedicam a vida para defender sua história, para lutar contra o apagamento. Portanto as pequenas brechas de história e vivência lésbica são essenciais para romper com a compulsoriedade da sociedade. Se a sociedade não fosse tão fortemente compulsória essas mulheres não passariam pelos infortúnios de se descobrir de maneira árdua, lutando contra o imaginário que acumularam dentro de si mesmas de que o que elas são é uma doença, algo que merece ser marginalizado.

Escrito por Lara Marinho.

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Written by Lara Marinho

Historiadora, mestranda. Escrevo por paixão, por ofício, por necessidade...

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