Uma análise sobre os contos do livro Amora, de Natalia Borges Polesso

Lara Marinho
4 min readOct 21, 2020

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Parte II

Trataremos agora sobre três contos específicos do livro amora, que são: “primeiras vezes”, “flor, flores e ferro retorcido” e “Botinas”.

Em “primeiras vezes” Natalia Borges apresenta-nos a história de uma garota de 17 anos e os dramas adolescentes que a acometem, mas, longe de ser particularidades de adolescentes individualizados, esses dramas são um reflexo da sociedade, logo, são comuns a muitas adolescentes lésbicas e bissexuais. Uma garota com 17 anos, dependendo de sua criação e classe social, já se sente na obrigação, como a nossa protagonista do conto “primeiras vezes”, de fazer sexo. A pressão para que meninas muito novas comecem a namorar — e quando digo namorar, o que se deve entender é relacionar-se com homens de maneira sexual e afetiva — é uma pressão social que nasce da hétero compulsoriedade. É hétero compulsório porque está implícito que a relação será com um homem já que essas garotas não têm em si pensamentos e caráter bem formados e vivem em um mundo onde o hétero é a regra, por isso não vivenciaram o mundo para além dos padrões impostos.

Não existe pressão para que mulheres jovens se relacionem cedo de maneira geral. De fato, o que existe é a pressão para que elas se relacionem cedo com homens, pois, a finalidade última é o agrado dos mesmos e a imersão delas na realidade social em que mulheres devem viver por e para homens. Então ao serem pressionadas a namorar e, consequentemente, a se envolver sexualmente com alguém, elas estão sendo obrigadas a se envolver sexualmente com homens, em última instância.

É comum, dentro da comunidade lésbica, que grande parte das mulheres já tenham se envolvido sexualmente com homens antes de descobrir suas reais preferências, ou melhor, antes de descobrir que a heterossexualidade é construída socialmente e que elas podem viver para além disso. E, apesar de muito pouco estudado e isso ser tratado como algo normal ou irrelevante, muitas dessas práticas, desses “relacionamentos”, acabam se convertendo em traumas na vida dessas mulheres. Muitas vezes, eram garotas muito novas e se sentem violadas por ter se sujeitado a se relacionar com homens, mas, não conseguindo culpar alguém específico, o assunto é deixado de lado e vira uma de muitas contradições na vida dessas mulheres. Muitas mulheres lésbicas são até mesmo mães — mães solo com muita frequência. Fazendo com que vivam uma tripla opressão eternamente.

A personagem principal do conto, então, resolve se envolver com um garoto, ainda mais pelo fato de que se sente confusa quanto aos sentimentos que ela nutre secretamente, a anos, por uma de suas amigas de escola e chegara a contar a ela, sem conseguir, contudo, desenvolver esse sentimento em algo real. O sentimento de desespero e não pertencimento na sociedade mostra-se ainda mais forte, por isso a necessidade de se relacionar com um menino se transforma em um fato, a personagem começa a namorar e tenta se relacionar sexualmente com o garoto, após assumir-se para sua colega, em mais “três terças feiras e estava namorando”. Ainda que sua relação com ele fosse algo estranhamente teatral, “era boa em gostar dele” e era ruim em física, era boa, portanto, em atuar a peça de se importar com homens e de direcionar seu afeto a eles. Reconhecer como violência a obrigação que mulheres sentem de se relacionar sexualmente com homens é algo que urge, violências sutis são muitas vezes mais devastadoras do que violências explícitas.

Nossa personagem principal, obviamente, sente-se desamparada após tentar se relacionar com o garoto, percebe-se “com a mesma cara de virgem” e “gostando muito mais de física agora” e muito menos de tentar gostar de garotos. Esse tipo de experiência só é possível em uma realidade heterossexualista, já que, homens e mulheres heterossexuais não sentem em si o peso da obrigação de se relacionarem sexualmente com homens e mulheres, respectivamente, para atestar a sua sexualidade, para ter “certeza” sobre ela, ou validá-la. A necessidade de validação heterossexual é algo que antecede em muito os desejos sexuais maduros, essa é uma das causas pelas quais meninas lésbicas são tão facilmente atraídas para relacionamentos abusivos, prostituição, casamentos infantis e adolescentes, gravidez precoce, dentre outros fatores de aprisionamento sexual.

Letícia, a garota pela qual a personagem principal de “primeiras vezes” era apaixonada, apesar de corresponder e se relacionar com ela, segue a vida namorando um garoto. Essa é uma jogada comum em filmes e livros de teor lésbico, que mulheres se relacionem por um período de tempo e depois “voltem” a se relacionar com homens. Os motivos pelos quais essa narrativa está tão fortemente construída no imaginário do que representam as vivências lésbicas se dá por diversos motivos. Muitas vezes essa é uma realidade, de mulheres bissexuais, que se relacionam com mulheres, mas, por medo e compulsoriedade, ao assumir algo sério se relacionam com homens, ou só se relacionam com mulheres em ambientes em que tais práticas serão relativamente aceitas. Ou é uma narrativa que constrói a ideia de “cura” lésbica ou indiferença, aventura ou fetiche frente a essas relações não normativas. De qualquer forma que se explique, o que está por trás é a compulsoriedade que faz com que muitas mulheres, outrora lésbicas em potencial, se afastem do lesbianismo. Quando pensamos na prática, na vivência real, muitas mulheres passam anos vagando pelo mundo heterossexual até que por fim, algumas vezes em idade avançada, tem coragem de romper com o padrão e seguir a intuição que teve quando jovem e ignorou pelo resto da vida. Algumas vezes essas mulheres nunca chegam a se relacionar com outras mulheres. Muitas possíveis lésbicas sequer vivem a lesbianidade, morrem anônimas como mães, esposas, tias, avós.

Essa é a segunda parte de uma sequência de textos em que é feita uma análise sobre o retrato da heterossexualidade compulsória no livro “amora” de Natalia Borges Polesso. Escrita por mim, Lara Marinho, 23 anos, historiadora em formação, lésbica e radical.

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Written by Lara Marinho

Historiadora, mestranda. Escrevo por paixão, por ofício, por necessidade...

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